(...... ainda em revisão......... depois de copiado ....... 05-11-2021)
Deus na ausência de Deus: em defesa de um poeta sem literatura
Devemos uma explicação: a editora esforçou-se,
imenso, para encontrar quem fizesse
a apresentação deste livro. Por este ou aquele motivo, todos os contactados
recusaram. Devo ter sido para aí a décima primeira
escolha. Já se sabe que há a Obra, o
autor e a pessoa que transporta a ambos. Desconheço se é vulgar que a pessoa que
transporta a ambos fale sobre o autor e uma sua obra. Mas é o que se segue.
Pede-me o autor que agradeça à Ordem Franciscana de Leiria, na pessoa da D. Marléne, a cedência desta igreja, e que diga que já aqui apresentou, em 2008 “o livro das pequenas orações” e, depois, talvez em 2012, um recital de poesia em conjunto com Luís Vieira da Mota. Fora isso, pede que refira a grande admiração que nutre pela figura de S. Francisco de Assis, mestre de pássaros e de coisas sem nada.
Também me pediu que declare que ele acredita que um dia será feita justiça às ilustrações que têm acompanhado dos seus livros, desde 2014, e que com este são 6. A seu ver, a arte de Fúlvio Capurso situa-se num plano peculiar e existencial invulgar, que merece um destaque aparte.
Quando comecei a ler “se houver domingo à tarde” encontrei ser dedicado a António Nunes. Indaguei o poeta sobre o motivo de tal dedicatória, mas não me respondeu. Assim que apenas posso deter-me a considerar alguns detalhes do meu convívio com ambos. Que haverá em António Nunes que tanto leva Carlos Lopes Pires a dedicar-lhe um livro, para além de diversos poemas neste e noutros livros? A resposta mais forte que encontrei foi: a espiritualidade de António, essa tão grande e comovente ânsia por infinito. Depois é preciso considerar a amizade: ambos fazem parte de uma Irmandade autodesignada Os Santos Monges Có-Có. Há quem pense tratar-se de uma paródia, simplesmente. Mas o que é uma paródia, senão uma divergência, um afastamento da trivialidade? Obrigado, António, por fazeres parte desta intrivialidade.
Antes de me debruçar sobre o tema, que intitula esta
intervenção, gostaria de dizer algo mais sobre o presente livro. No essencial,
os temas são os habituais: a revisitação das coisas que este poeta considera
importantes, os amigos, o sentido da vida, os filhos, os animais e os insectos,
o amor, a espiritualidade. Mais concretamente, o livro está dividido em 6
capítulos:
se um dia houver domingo à tarde
o homem é um animal cansado
os outros dias
o meu quintal tem dez mil lugares novas cartas aos
amigos
orações
Desconheço, ao certo, de onde vem o título dado a
esta obra, mas recordo ele ter-me dito que, na sua infância e adolescência, os
fins-de-semana de verão eram marcados pela presença dos seus tios e primos, que
viviam em Tomar e se deslocavam a Leiria, de onde saíam depois para as praias
de Pedrógão ou Vieira. E regressavam a suas casas no domingo ao final de tarde.
Tempos felizes e simples, em que a tarde de domingo era, simultaneamente, o
auge e o final dessa felicidade singela e simples.
Realmente, a simplicidade dos seus poemas, só pode comparar-se à simplicidade desses tempos felizes. Tempos em que não eram necessárias explicações para a magia do mundo. Em que tudo era o que era por si. Cada coisa que havia era pura magia, sem explicações ou apetrechos.
Poderá dizer-se, seguindo, ainda, a leitura que tenho
feito da sua Obra, que esta é marcada por uma busca de profunda ignorância,
sobretudo e muito marcadamente, a partir
de 2017, com o livro
“a minha poesia
é uma ignorância”, título
este, que deve ser lido com atenção. Poderá alguém dizer que são apenas
cinco livros e cinco anos, o que é verdade. Mas também é verdade que estes cinco livros, no conjunto,
constituem 881 páginas e para cima de 800 poemas, e o tempo de um poema não é o
tempo dos relógios. De qualquer modo, a partir daí, incluindo no livro agora
apresentado, são múltiplas as referências à ignorância. Esta ignorância
junta-se à simplicidade e é, igualmente, ameu ver, um afastamento do
pensamento literário dominante, no caso de o haver, coisa de que o poeta não
está certo, mas que parece dar-lhe jeito, resultando num movimento de
divergência e afastamento. Esta ideia aparece em variados poemas.
Permitam que vos cite este,
retirado de “onde
as maçãs crescem” (2020):
eu não escrevo
por este ou aquele motivo
como talvez fazer arte
ou salvar o mundo da obscuridade
ou ser como aqueles poetas
que contribuem para a grandeza da literatura
eu simplesmente não sei a única coisa
que parece que sei
é que se vê muito mal lá
fora
Na verdade, posso afirmar, com toda a convicção, que Carlos Lopes Pires tenta, a todo o custo, afastar-se dos que
fazem arte e literatura, em particular. Tal tem incomodado algumas pessoas, que
muito apreciam arte e literatura, e consideram
que
estas considerações, por parte do poeta, soam a falso ou a um nefasto
desconhecimento da cultura geral. Ao contrário do que talvez fosse de
esperar, tais censuras parecem agradar-lhe e até alimentar as várias
estranhezas que vai escrevendo. Atente-se no seguinte poema (do livro a publicar em 2022, “as rosas impossíveis”):
todos os poetas são cultos menos
eu
nem modernos nem clássicos
prefiro os pássaros
por outras palavras ando por
estas bandas como um gato
sobre os telhados
Isto é, a tal ignorância parece
funcionar como um afastamento dos cânones, do que está santificado e aprovado pelos que definem
o que deve a poesia
ser. Provavelmente, este afastamento é o que levará a que, mais tarde, se diga um poeta da província. É como se fosse uma espécie de clandestinidade ou
hermitação. Um exemplo do livro “as rosas impossíveis”, capítulo “um poeta da província”:
que não agradam os meus poemas aos que definem o futuro da poesia
as estrelas o
limoeiro os gatos
Os poemas são o mundo e não a compreensão do mundo. Os poemas são Deus
e não a busca de Deus. Alguns cantam, alguns pintam, alguns contemplam, alguns
esvaziam-se perante as flores, alguns rezam. Ele faz tudo isso nos poemas.
Debruçando-me, agora, sobre
o tema do título “Deus na ausência
de Deus”, começarei por citar um poema de “se houver
domingo à tarde”:
(13º mandamento)
nunca verás a Deus
de nada darás conta nem dos seus
passos percorrendo a tua casa até à rua
julgarás
que foi o mar
ouvirás um rumor
e não será a tua voz
apenas uma sombra que seguias
e na hora da tua morte
aceitarás
Sendo eu aquele
que carrega o poeta Carlos
Lopes Pires, e a sua obra, também me tenho questionado sobre as suas
frequentes incursões no domínio dito religioso e, sobretudo, nas suas, talvez aparentes,
contradições no respeitante ao uso da palavra e ideia de Deus. Num mundo em que
existem tantos especialistas sobre Deus e as
muitas religiões, venho aqui fazer uma reflexão, que é, em certa medida,
uma apologia do próprio poeta.
Salvo melhor opinião,
este poeta crê num Deus ausente. Portanto,
não crê num Deus
presente ou escondido
em tudo, a que se chama panteísmo. E se Carlos Lopes Pires
crê que Deus
inexiste, então é porque nele não crê. Atente-se nestes dois pequenos poemas,
sendo que muitos outros poderiam ser convocados:
desde há muito que sei
da tua inexistência
mas não te censuro nem às rosas
senhor
tu sabes que não creio em ti
e sabes que sou
sincero pois falo-te
olhos nos olhos
e com estas mãos
que se abrem com rosas
esta boca salgada por palavras
que nunca
te encontrarão
Gostaria, ainda, e mais uma vez, de chamar a atenção para o facto deste poeta se considerar um poeta da
província. Esta evocação não é despicienda. Com efeito, tal qualidade parece
funcionar como uma distanciação, não apenas dos acontecimentos ditos
literários, mas sobretudo do meio intelectual e pensante, onde se inclui o ideário
religioso, e afins. Aliás, julgo poder mesmo dizer que, dos seus poemas, emana
a ideia de que as religiões são um afastamento do caminho espiritual ou, como ele escreve num futuro livro,
um afastamento do “caminho da água”. Do livro “as
rosas impossíveis” cito:
não desistas de estar aqui repete sempre
e outra vez
os nomes de
quem amas
e dá-lhes rostos vozes gestos
faz com que
estejam sempre contigo
não acredites
nos que te
mentem sobre a morte
pois já te
mentiram sobre a vida
E eis aqui, talvez, o cerne da sua dissidência: as religiões são meios e processos
de aprisionamento físico, mental, espiritual. O seu objectivo não é a salvação
ou a alteridade de cada pessoa, mas pelo contrário, a sua redução
à servidão terrena.
Há um pequeno poema, de um
livro a editar, que diz:
nada pode salvar-te de ti próprio
nem mesmo os plátanos junto aos
rios
É neste ponto
que ele se afasta, definitivamente, das “escolas” religiosas, sem que, porém, queira ele constituir-se em catequista. Na verdade, parece-me
mais adequado dizer que a questão religiosa, na Obra de Carlos Lopes Pires, só o é para um possível leitor esporádico dos seus poemas.
Para o poeta, creio, não existe uma questão
religiosa, na medida em que esse espaço
é totalmente ocupado
pelos seus poemas. Quando muito, existe uma questão
poética e nela cabem as restantes. Por outras palavras, a experiência poética
precede e define
qualquer eventual “questão religiosa”. Ainda, e talvez, porque qualquer religião
se funda no mais miserável
da condição humana. E não o inverso, como tanto se insiste em afirmar. As religiões
sustentam-se na posição
do mais forte e no pensamento dominante e, por isso, na intolerância. As religiões não suportam aquele que diverge. Daí, e em conclusão,
que não possa dizer-se
senão que a religião promove o afastamento do caminho da água.
Com efeito, de acordo com este poeta, as diversas religiões instituíram-se no discurso
das aparências, que funda a realidade ilusória,
construída e definida
pela própria história humana. A linguagem, a escrita, as palavras, servem esse fim, e são parte e instrumentos
da sua construção. Mas um poeta, ao fazer uso das palavras, pode fazer com que
os poemas sejam uma outra coisa. Que não sejam concebidos e usados como
representantes da realidade aparente. E este poeta sabe que as palavras não
representam qualquer realidade, antes a impossibilidade de o fazer, pois elas
próprias são emanação do infinito, dessa matéria negra que não conseguimos. No
discurso das aparências os poemas têm metáforas, mas o poeta sabe que os poemas
são uma outra coisa. Porque os poemas, digo-o
agora e em nome de Carlos Lopes Pires, os poemas são uma impossibilidade e por isso se
situam fora do domínio das aparências. Nos poemas usam-se palavras, mas não são
palavras os poemas. Nos poemas é quando as palavras atingem o paradoxo de revelar
o espírito do mundo. E talvez que a direcção do homo sapiens, o homem sábio,
deva ser o de se tornar o homem espiritual, e que tal um dia seja a própria
definição do que é ser humano. Que é o caminho da abundância. Não de
instituições ou religiões, mas o de se tornar mais que uma coisa.
De modo idêntico,
na realidade das aparências há um deus, é verdade,
um deus das aparências.
Todavia, há um outro, ausente nas aparências, que pode percorrer em cada um de
nós os caminhos da abundância, numa realidade que nos escapa. Esse é o caminho
da espiritualidade, o caminho da água. O caminho dos poemas. Estas ideias podemos
encontrá-las no texto, que passo a citar, do livro a publicar “as rosas impossíveis”: (diapositivo)
o poeta não busca
posteridade. ele aprendeu que essa é uma palavra sem fundo
o poeta não busca prestígio.
ele sabe que tal palavra pesa muito e cega
o poeta não escreve para que um leitor o leia. poucos
serão os que, realmente, hão de lê-lo
o poeta não tem motivos úteis para escrever. ele
desconhece por que escreve
o poeta não
escreve para que outros se sintam alegres ou tristes. ele revela
o poeta não apregoa
verdades. ele torna-se a sua verdade
o poeta sabe que nenhum
poema é escrito com palavras
o poeta nunca
há de estar onde o procuram
o poeta não morre uma vez. morre
as vezes necessárias
o poeta escreve contigo. embora ainda não saibas, tu és Deus
Eventualmente, talvez agora alguns de vós possam
estar desiludidos. Todavia, e em abono da verdade, deve reconhecer-se que
Carlos Lopes Pires tem feito múltiplas advertências. Repare-se: no livro agora
apresentado, há até um pequeno texto que diz (pág. 175):
O que é
então Deus para este poeta?
Julgo poder afirmar que, em Carlos Lopes Pires, Deus
é o sentimento de alteridade que pode haver em cada um de nós. O que em nós nos
supera, nos transcende. O que anda lá fora na noite escura e chove.
Não um ser ou uma coisa. Deus é
o nosso sentimento de transcendência. Neste sentido, Deus não necessita
de presença ou de existir enquanto
um Deus pessoal. Deus é o que não é sendo em nós o espírito do mundo. E então digo: eu não preciso de
um Deus-pessoa, pois Deus é em mim nesta existência e nesta noite que não
alcanço. Deus é o meu ponto cego de existência da prodigiosa matéria negra que
não sei.
Por isso, permitam que vos repita: para este poeta, Deus é gratidão, o meu sentimento de gratidão. Deus é generosidade, o meu sentimento de generosidade. Deus é o meu sentimento de amor, de amizade, de fraternidade. Também não é a maçã, mas o meu encontro com a maçã. Deus não é um recepcionista, um gerente, um patrão, um guerreiro, um vingador. Deus não é uma figura, um retrato, uma estátua. Deus é aquele que é em mim através da minha própria existência no universo. O melhor de mim, quando sou o melhor para os outros, para o meu próximo. Nesta vida, em que caminhamos emprestados, estrangeiros uns dos outros, quando me dirijo a Deus é ao melhor de mim que me dirijo. Daí que ele se sinta com o atrevimento de afirmar que Deus não precisa existir: basta o sentimento da sua presença. A este sentimento o poeta tem chamado “o toque de Deus”.
Afirmarei, sem qualquer réstia de dúvida, que a
religião de Carlos Lopes Pires está nos seus poemas. E neles criou um quintal.
E tudo o que lhe é querido
aí foi morar. Ele veio de um país em que não há nada fora e nada
dentro, pois fora e dentro são ilusões. É um país simples, sem arranha-céus,
sofisticações ou enfeites. E assim são os seus poemas: simples, produto de um
poeta ignorante e da província. Que em criança aprendeu que todos somos
estrangeiros. E sim, que se dirige a Deus uma e outra vez, pois é a si mesmo
que se dirige. E dirigindo-se a si é com o infinito que fala.
Ele confidenciou-me que gostaria muito de conseguir
explicar, mas não consegue, que tudo o que foi, o que é, o que será, está aqui.
Porque o mundo, onde tudo está, incluindo o mundo das aparências, nunca
acabará, pois nunca começou. O infinito é aqui. E se lhe perguntarem onde soube esta verdade, ele responderá: todos os dias a aprendo nos poemas. Todos os
dias há um poema que me ensina que aquele pássaro que vejo passar e desaparecer
da minha vista, ainda lá está.
Como pode
alguém querer que ele chame a esta verdade literatura?