quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Deus na ausência de Deus: em defesa de um poeta sem literatura

 

(...... ainda em revisão.........   depois de copiado .......       05-11-2021)


Deus na ausência de Deus: em defesa de um poeta sem literatura

 

Devemos uma explicação: a editora esforçou-se, imenso, para encontrar quem fizesse a apresentação deste livro. Por este ou aquele motivo, todos os contactados recusaram. Devo ter sido para a décima primeira escolha. Já se sabe que a Obra, o autor e a pessoa que transporta a ambos. Desconheço se é vulgar que a pessoa que transporta a ambos fale sobre o autor e uma sua obra. Mas é o que se segue.

Pede-me o autor que agradeça à Ordem Franciscana de Leiria, na pessoa da D. Marléne, a cedência desta igreja, e que diga que já aqui apresentou, em 2008 “o livro das pequenas orações” e, depois, talvez em 2012, um recital de poesia em conjunto com Luís Vieira da Mota. Fora isso, pede que refira a grande admiração que nutre pela figura de S. Francisco de Assis, mestre de pássaros e de coisas sem nada.  

Também me pediu que declare que ele acredita que um dia será feita justiça às ilustrações que têm acompanhado dos seus livros, desde 2014, e que com este são 6. A seu ver, a arte de Fúlvio Capurso situa-se num plano peculiar e existencial invulgar, que merece um destaque aparte.  

Quando comecei a ler “se houver domingo à tarde” encontrei ser dedicado António Nunes. Indaguei o poeta sobre o motivo de tal dedicatória, mas não me respondeu. Assim que apenas posso deter-me a considerar alguns detalhes do meu convívio com ambos. Que haverá em António Nunes que tanto leva Carlos Lopes Pires a dedicar-lhe um livro, para além de diversos poemas neste e noutros livros? A resposta mais forte que encontrei foi: a espiritualidade de António, essa tão grande e comovente ânsia por infinito. Depois é preciso considerar a amizade: ambos fazem parte de uma Irmandade autodesignada Os Santos Monges Có-Có. Há quem pense tratar-se de uma paródia, simplesmente. Mas o que é uma paródia, senão uma divergência, um afastamento da trivialidade? Obrigado, António, por fazeres parte desta intrivialidade. 


Antes de me debruçar sobre o tema, que intitula esta intervenção, gostaria de dizer algo mais sobre o presente livro. No essencial, os temas são os habituais: a revisitação das coisas que este poeta considera importantes, os amigos, o sentido da vida, os filhos, os animais e os insectos, o amor, a espiritualidade. Mais concretamente, o livro está dividido em 6 capítulos:

 

se um dia houver domingo à tarde 

o homem é um animal cansado

os outros dias

o meu quintal tem dez mil lugares novas cartas aos amigos

orações

 Carlos Lopes Pires diz-se um poeta sem literatura, e compreendo por que o faz, considerando a tendência que nos poetas com literatura há para escreverem para a posteridade, desenvolvendo temas relativamente impessoais e cheios de importância universal, como escrever poemas sobre os poemas ou sobre outros ilustres poetas. Ora, no seu caso, proliferam poemas dedicados a familiares, animais, insectos e amigos. Tem até um livro que dedica a um gato chamado patitas. Há quem julgue que é um fingimento. Mas ele já me garantiu que é sincero, pois o infinito é aqui e a posteridade está no seu quintal. Mesmo o Jesus Cristo que aparece, ao longo dos seus livros, é alguém tão próximo, que vive numa parede do seu quarto.

Desconheço, ao certo, de onde vem o título dado a esta obra, mas recordo ele ter-me dito que, na sua infância e adolescência, os fins-de-semana de verão eram marcados pela presença dos seus tios e primos, que viviam em Tomar e se deslocavam a Leiria, de onde saíam depois para as praias de Pedrógão ou Vieira. E regressavam a suas casas no domingo ao final de tarde. Tempos felizes e simples, em que a tarde de domingo era, simultaneamente, o auge e o final dessa felicidade singela e simples.

Realmente, a simplicidade dos seus poemas, só pode comparar-se à simplicidade desses tempos felizes. Tempos em que não eram necessárias explicações para a magia do mundo. Em que tudo era o que era por si. Cada coisa que havia era pura magia, sem explicações ou apetrechos.

Poderá dizer-se, seguindo, ainda, a leitura que tenho feito da sua Obra, que esta é marcada por uma busca de profunda ignorância, sobretudo e muito marcadamente, a partir de  2017, com o livro “a minha poesia é uma ignorância”, título este, que deve ser lido com atenção. Poderá alguém dizer que são apenas cinco livros e cinco anos, o que é verdade. Mas também é verdade que estes cinco livros, no conjunto, constituem 881 páginas e para cima de 800 poemas, e o tempo de um poema não é o tempo dos relógios. De qualquer modo, a partir daí, incluindo no livro agora apresentado, são múltiplas as referências à ignorância. Esta ignorância junta-se à simplicidade e é, igualmente, ameu ver, um afastamento do pensamento literário dominante, no caso de o haver, coisa de que o poeta não está certo, mas que parece dar-lhe jeito, resultando num movimento de divergência e afastamento. Esta ideia aparece em variados poemas. Permitam que vos cite este, retirado de “onde as maçãs crescem” (2020):

 

eu não escrevo

por este ou aquele motivo

 

como talvez fazer arte

ou salvar o mundo da obscuridade

 

ou ser como aqueles poetas

que contribuem para a grandeza da literatura

eu simplesmente não sei a única coisa

que parece que sei

 

é que se vê muito mal lá fora

 

Na verdade, posso afirmar, com toda a convicção, que Carlos Lopes Pires tenta, a todo o custo, afastar-se dos que fazem arte e literatura, em particular. Tal tem incomodado algumas pessoas, que muito apreciam arte e literatura, e consideram que


estas considerações, por parte do poeta, soam a falso ou a um nefasto desconhecimento da cultura geral. Ao contrário do que talvez fosse de esperar, tais censuras parecem agradar-lhe e até alimentar as várias estranhezas que vai escrevendo. Atente-se no seguinte poema (do livro a publicar em 2022, “as rosas impossíveis”):

 

todos os poetas são cultos menos eu

 

nem modernos nem clássicos

 

prefiro os pássaros

 

por outras palavras ando por estas bandas como um gato

 

sobre os telhados

 

Isto é, a tal ignorância parece funcionar como um afastamento dos cânones, do que está santificado e aprovado pelos que definem o que deve a poesia ser. Provavelmente, este afastamento é o que levará a que, mais tarde, se diga um poeta da província. É como se fosse uma espécie de clandestinidade ou hermitação. Um exemplo do livro “as rosas impossíveis”, capítulo “um poeta da província”:

 

sei agora

de fonte segura

 

que não agradam os meus poemas aos que definem o futuro da poesia

e eu compreendo

no meu quintal

é tudo muito simples

 

as estrelas o limoeiro os gatos

 

até o rui pascoal com os seus retratos


 

Os poemas são o mundo e não a compreensão do mundo. Os poemas são Deus e não a busca de Deus. Alguns cantam, alguns pintam, alguns contemplam, alguns esvaziam-se perante as flores, alguns rezam. Ele faz tudo isso nos poemas.

 

Debruçando-me, agora, sobre o tema do título “Deus na ausência de Deus”, começarei por citar um poema de se houver domingo à tarde”:

(13º mandamento) 

nunca verás a Deus

de nada darás conta nem dos seus passos percorrendo a tua casa até à rua

 

julgarás

que foi o mar

 

ouvirás um rumor

e não será a tua voz

 

apenas uma sombra que seguias

 

e na hora da tua morte aceitarás

 

 

Sendo eu aquele que carrega o poeta Carlos Lopes Pires, e a sua obra, também me tenho questionado sobre as suas frequentes incursões no domínio dito religioso e, sobretudo, nas suas, talvez aparentes, contradições no respeitante ao uso da palavra e ideia de Deus. Num mundo em que existem tantos especialistas sobre Deus e as muitas religiões, venho aqui fazer uma reflexão, que é, em certa medida, uma apologia do próprio poeta.

Salvo melhor opinião, este poeta crê num Deus ausente. Portanto, não crê num Deus presente ou escondido em tudo, a que se chama panteísmo. E se Carlos Lopes Pires


crê que Deus inexiste, então é porque nele não crê. Atente-se nestes dois pequenos poemas, sendo que muitos outros poderiam ser convocados:

 

desde há muito que sei

da tua inexistência

 

mas não te censuro nem às rosas

 

senhor

 

tu sabes que não creio em ti

e sabes que sou sincero pois falo-te

olhos nos olhos

e com estas mãos

que se abrem com rosas

 

esta boca salgada por palavras

 

que nunca

te encontrarão

 

 

Gostaria, ainda, e mais uma vez, de chamar a atenção para o facto deste poeta se considerar um poeta da província. Esta evocação não é despicienda. Com efeito, tal qualidade parece funcionar como uma distanciação, não apenas dos acontecimentos ditos literários, mas sobretudo do meio intelectual e pensante, onde se inclui o ideário religioso, e afins. Aliás, julgo poder mesmo dizer que, dos seus poemas, emana a ideia de que as religiões são um afastamento do caminho espiritual ou, como ele escreve num futuro livro, um afastamento do “caminho da água”. Do livro “as rosas impossíveis” cito:

não desistas de estar aqui repete sempre

e outra vez

os nomes de quem amas


e dá-lhes rostos vozes gestos

 

faz com que estejam sempre contigo

 

não acredites

nos que te mentem sobre a morte

 

pois já te mentiram sobre a vida

 

E eis aqui, talvez, o cerne da sua dissidência: as religiões são meios e processos de aprisionamento físico, mental, espiritual. O seu objectivo não é a salvação ou a alteridade de cada pessoa, mas pelo contrário, a sua redução à servidão terrena. um pequeno poema, de um livro a editar, que diz:

 

nada pode salvar-te de ti próprio

 

nem mesmo os plátanos junto aos rios

 

É neste ponto que ele se afasta, definitivamente, das “escolas” religiosas, sem que, porém, queira ele constituir-se em catequista. Na verdade, parece-me mais adequado dizer que a questão religiosa, na Obra de Carlos Lopes Pires, o é para um possível leitor esporádico dos seus poemas. Para o poeta, creio, não existe uma questão religiosa, na medida em que esse espaço é totalmente ocupado pelos seus poemas. Quando muito, existe uma questão poética e nela cabem as restantes. Por outras palavras, a experiência poética precede e define qualquer eventual “questão religiosa”. Ainda, e talvez, porque qualquer religião se funda no mais miserável da condição humana. E não o inverso, como tanto se insiste em afirmar. As religiões sustentam-se na posição do mais forte e no pensamento dominante e, por isso, na intolerância. As religiões não suportam aquele que diverge. Daí, e em conclusão, que não possa dizer-se senão que a religião promove o afastamento do caminho da água. Com efeito, de acordo com este poeta, as diversas religiões instituíram-se no discurso


das aparências, que funda a realidade ilusória, construída e definida pela própria história humana. A linguagem, a escrita, as palavras, servem esse fim, e são parte e instrumentos da sua construção. Mas um poeta, ao fazer uso das palavras, pode fazer com que os poemas sejam uma outra coisa. Que não sejam concebidos e usados como representantes da realidade aparente. E este poeta sabe que as palavras não representam qualquer realidade, antes a impossibilidade de o fazer, pois elas próprias são emanação do infinito, dessa matéria negra que não conseguimos. No discurso das aparências os poemas têm metáforas, mas o poeta sabe que os poemas são uma outra coisa. Porque os poemas, digo-o agora e em nome de Carlos Lopes Pires, os poemas são uma impossibilidade e por isso se situam fora do domínio das aparências. Nos poemas usam-se palavras, mas não são palavras os poemas. Nos poemas é quando as palavras atingem o paradoxo de revelar o espírito do mundo. E talvez que a direcção do homo sapiens, o homem sábio, deva ser o de se tornar o homem espiritual, e que tal um dia seja a própria definição do que é ser humano. Que é o caminho da abundância. Não de instituições ou religiões, mas o de se tornar mais que uma coisa.

De modo idêntico, na realidade das aparências um deus, é verdade, um deus das aparências. Todavia, há um outro, ausente nas aparências, que pode percorrer em cada um de nós os caminhos da abundância, numa realidade que nos escapa. Esse é o caminho da espiritualidade, o caminho da água. O caminho dos poemas. Estas ideias podemos encontrá-las no texto, que passo a citar, do livro a publicar “as rosas impossíveis”: (diapositivo)

 

o poeta não busca posteridade. ele aprendeu que essa é uma palavra sem fundo

o poeta não busca prestígio. ele sabe que tal palavra pesa muito e cega

o poeta não escreve para que um leitor o leia. poucos serão os que, realmente, hão de lê-lo

o poeta não tem motivos úteis para escrever. ele desconhece por que escreve

o poeta não escreve para que outros se sintam alegres ou tristes. ele revela

o poeta não apregoa verdades. ele torna-se a sua verdade

o poeta sabe que nenhum poema é escrito com palavras

o poeta nunca há de estar onde o procuram

o poeta não morre uma vez. morre as vezes necessárias


o poeta escreve contigo. embora ainda não saibas, tu és Deus

 

Eventualmente, talvez agora alguns de vós possam estar desiludidos. Todavia, e em abono da verdade, deve reconhecer-se que Carlos Lopes Pires tem feito múltiplas advertências. Repare-se: no livro agora apresentado, há até um pequeno texto que diz (pág. 175):

 “disseram-me que escrevo demasiados poemas sobre Deus, considerando que são muitas as vezes que digo que se foi, que não está, ou que é apenas um pássaro que vive no meu quintal. e mesmo que escrevo, estranhamente, orações que lhe são dirigidas. reconheço e aceito todas as críticas, incluindo que é estranho que eu escreva poemas sobre Deus e que tanto creia na sua inexistência. há dias em que acordo com ele a meu lado e não lhe digo “não te havia dado conta”, pois sei que ele me responderia “é natural, pois sempre estive aqui.” noites em que vejo a sua silhueta passear nos meus poemas e não lhe pergunto “o que fazes aí”, pois sei que me responderia “isso te pergunto eu.” é que ao aceitar a ignorância aceitei-a em todo o seu esplendor. e sim, rezo a Deus como também se pode rezar a ninguém. pessoas que sabem muito sobre Deus, e aspiram saber cada vez mais. eu, que sou filho da ignorância, aceito as rosas impossíveis.”

 

O que é então Deus para este poeta?

Julgo poder afirmar que, em Carlos Lopes Pires, Deus é o sentimento de alteridade que pode haver em cada um de nós. O que em nós nos supera, nos transcende. O que anda fora na noite escura e chove. Não um ser ou uma coisa. Deus é o nosso sentimento de transcendência. Neste sentido, Deus não necessita de presença ou de existir enquanto um Deus pessoal. Deus é o que não é sendo em nós o espírito do mundo. E então digo: eu não preciso de um Deus-pessoa, pois Deus é em mim nesta existência e nesta noite que não alcanço. Deus é o meu ponto cego de existência da prodigiosa matéria negra que não sei.

Por isso, permitam que vos repita: para este poeta, Deus é gratidão, o meu sentimento de gratidão. Deus é generosidade, o meu sentimento de generosidade. Deus é o meu sentimento de amor, de amizade, de fraternidade. Também não é a maçã, mas o meu encontro com a maçã. Deus não é um recepcionista, um gerente, um patrão, um guerreiro, um vingador. Deus não é uma figura, um retrato, uma estátua. Deus é aquele que é em mim através da minha própria existência no universo. O melhor de mim, quando sou o melhor para os outros, para o meu próximo. Nesta vida, em que caminhamos emprestados, estrangeiros uns dos outros, quando me dirijo a Deus é ao melhor de mim que me dirijo. Daí que ele se sinta com o atrevimento de afirmar que Deus não precisa existir: basta o sentimento da sua presença. A este sentimento o poeta tem chamado “o toque de Deus”.

Afirmarei, sem qualquer réstia de dúvida, que a religião de Carlos Lopes Pires está nos seus poemas. E neles criou um quintal. E tudo o que lhe é querido foi morar. Ele veio de um país em que não há nada fora e nada dentro, pois fora e dentro são ilusões. É um país simples, sem arranha-céus, sofisticações ou enfeites. E assim são os seus poemas: simples, produto de um poeta ignorante e da província. Que em criança aprendeu que todos somos estrangeiros. E sim, que se dirige a Deus uma e outra vez, pois é a si mesmo que se dirige. E dirigindo-se a si é com o infinito que fala.

Ele confidenciou-me que gostaria muito de conseguir explicar, mas não consegue, que tudo o que foi, o que é, o que será, está aqui. Porque o mundo, onde tudo está, incluindo o mundo das aparências, nunca acabará, pois nunca começou. O infinito é aqui. E se lhe perguntarem onde soube esta verdade, ele responderá: todos os dias a aprendo nos poemas. Todos os dias há um poema que me ensina que aquele pássaro que vejo passar e desaparecer da minha vista, ainda lá está.

Como pode alguém querer que ele chame a esta verdade literatura?


Carlos Lopes Pires na autoapresentação do seu livro
´se houver domingo à tarde`
18 Setembro de 2021
Igreja de S. Francisco
Leiria